AUTORA: DENISE KINDLEY
PERSONAGENS:
· Ex-prostituta - convertida, 24
· Aidético - muito magro, 23 - pode estar acompanhado de uma enfermeira
· Cristão - muito alegre, 19
· Ex-alcoólatra - mais maduro, 32
· Barman
Cenário: um bar, com 5 mesas e cadeiras e um balcão de bar, com algumas garrafas e copos.
Cada ator estará em uma mesa separada, e o barman no balcão, sempre o limpando e arrumando, e preparando bebidas. A cada fala sua, entrega um copo com um suco para a personagem referida.
Aidético (luz amarela - vai até o centro do palco em uma cadeira de rodas e levanta-se).
" Mulher! Olha este menino, só brinca de boneca! É preciso dar um jeito nele, parece um maricas!" (senta-se)
Mas nunca se importaram com o que se passava dentro de mim. História! Gostava de brincar de bonecas, sim! Fazer o quê? Era criança! Eu fazia o que sentia vontade, sempre me acertei mais com as meninas... os meninos eram brutos, violentos e só queriam jogar. Eu era diferente deles... e eu não me sentia culpado por isso! Só que foi se tornando cada vez mais forte, e eu fui perdendo o controle. (volta para a mesa na cadeira de rodas)
Ex-prostituta (luz rosa - desce do palco e refere-se a alguém da platéia)
"E aí, gato? Algum programa para esta noite? Satisfação garantida!"
(vai voltando à boca de cena enquanto fala)
Repeti essa frase milhares de vezes, acho que até muito mais, embora nem sempre fosse para um gato como ele (aponta para a pessoa na platéia). Às vezes apareciam uns velhos, gordos e bêbados. Tudo bem, era a minha profissão, tinha que dar prazer a quem quer que fosse. Não que eu gostasse do que fazia, sabe, mas já era costume, como muitos professores que queriam ser cantores mas continuaram sendo professores por muitos e muitos anos; ou ainda como muitos médicos que sonharam em ser dublês mas continuam sendo médicos; como advogados que queriam ser locutores ou locutores que queriam ser advogados... a verdade é que ficam anos trabalhando no que não gostam simplesmente por hábito. E eu era mais uma acomodada no hábito da profissão. (senta-se)
Cristão (luz verde - andando entre as mesas)
"Se as águas do mar da vida, quiserem te afogar, segura na mão de Deus e vai. Segura na mão de Deus,..." Não conseguia ver verdade nisso, estava longe demais. Cresci ouvindo essa canção, mas eu me sentia completamente alienado, um peixe fora d'água. E pior é que eu me sentia culpado! Não podia ser assim, mas era, fazer o quê? Eu até queria sentir-me integrado, mas não dava; eu até gostava do pessoal, mas me acertava mais com a galera do barulho, tinha minha turma certa... às vezes até rolava uma erva, mas ninguém podia ficar sabendo! E no domingo, eu estava lá... "Segura na mão de Deus, segura na mão de Deus..." (senta-se)
Ex-alcoólatra (levanta e vai cambaleando até a frente da mesa) "Homem pra ser muito homem tem que beber sem parar, falar mais alto em casa..." (volta ao estado de sobriedade) Meu primeiro porre foi quando eu ainda era uma criança, não que eu tivesse bebido muito, mas o suficiente, para uma criança de oito anos... Meu pai queria mostrar aos amigos que eu já era homem. Se grau de macheza se mede pela quantia que se empina, eu já fui muito macho. Agora não sou mais, mas já fui. Martini, vodka, run, vermut... Misturava tudo, perdi tudo... Tinha quem dizia que era doença, tinha quem dizia que era pura sem-vergonhice. A verdade é que eu já amanhecia bêbado. Vermut, run, vodka, martini...
Barman: Você já disse isso...
Ex-alcoólatra: tá! É que agora eu disse de trás pra frente...
Barman: Ah! bom.
Aidético (luz azul - levanta-se) "Nossa, como ele é delicado, sensível!" Com 16 anos conheci um rapaz; não podendo fazer nada, investi na relação. Quando Marcelo percebeu que eu gostava dele começou a evitar-me, mas eu ligava para ele, mandava cartões, cartas, até que começamos a nos encontra, escondidos, claro. Ficamos juntos por um ano, depois ele começou a bater em mim. Passava as noites em festas, e eu em casa, chorando... Estava sofrendo muito, resolvi deixá-lo e voltei para a casa de meus pais que, a essa altura, não tavam nem aí. papai só trabalhava, e mamãe só tomava chá e telefonava; e eu fiquei dois anos só assistindo televisão. Tinha uma única amiga, e ela me convenceu a fazer o teste de HIV. tinha medo, mas fiz. Deu positivo...(a luz apagada, ele volta para a mesa)
Ex-prostituta (luz rosa, encostada no balcão) "Não, por favor, eu não quero! Não faça isso!.." Meu padrasto foi um animal. Eu tinha 12 anos, ia fazer o que agora?(vai até a boca do palco) E aí gato, algum programa para hoje? Satisfação garantida!(vai voltando enquanto o barman fala)
Barman: Você já disse isso.
Ex-prostituta: Ai, desculpe. É que por tantos anos repeti essa mesma frase... É o hábito! Com 12 anos fui para a rua, não podia mais encarar aquele monstro em minha casa... sentia-me sozinha no mundo. Comecei a trabalhar com minha famosa frase, e assim tentava diminuir a minha solidão.
Cristão (luz verde, segredando escandalosamente) "Mas como é que pode! O Anderson, logo ele, filho de pastor... isso não podia acontecer..." Eu sou uma pessoa normal, e como todos, também peco. Ninguém pode sentir o que os outros querem que a gente sinta. E fui a muitas festas, às vezes perdia o controle, excedia-me na bebida, o baseado era cada vez mais freqüente; chegava sempre de madrugadão, olhos vermelhos, dormia na escola, as notas caindo vertiginosamente... Mas eu arrasava com a mulherada. A danceteria era pequena pra mim, e o pessoal da igreja apavorado. Mas o problema era quando eu ficava sozinho, em meu quarto...
Ex-alcoólatra (luz roxa - junto à primeira fila) "Tem uns trocados para me dar? Tenho que comprar leite para os meus filhos. (Vira-se para outra pessoa) Ei moço! Tem 50 centavos aí? (vai voltando ao palco) Eu preciso de uns trocados..." Já passei por cada situação que nem é bom lembrar; isso sem falar das que eu realmente não me lembro, nem que eu quisesse. Cansei de vomitar pelas esquinas, fazer xixi por todos os cantos. Fiquei pelas sarjetas chorando minha má sorte; meu cérebro já não funcionava para mais nada, só lembrava das cenas de meu pai batendo em minha mãe. Meus olhos viam tudo duplicado, isso sem falar nas terríveis dores de estômago. Sentia meu fim próximo, isso com 28 anos...
Aidético (luz branca) Há quem ache que Aids é um castigo de Deus, mas eu não a vejo mais assim. Falo não mais por que antes eu a via assim mesmo, o piro castigo do mundo. Mas quem conhece um pouquinho a Deus sabe que Ele nos ama demais para nos castigar assim. Um dia Ele disse: "Tudo te é permitido, mas nem tudo te convém". É, e se você faz algo que não convém, deve arcar com as conseqüências depois. Regras são regras. Sei que Deus me ama como ninguém e Ele não queria que eu fosse um aidético esperando pela morte, mas quebrei um regra imposta. Não é castigo, é justiça de Deus. Sei que logo estarei com Ele, em um lugar sem dor e sem doenças.
Ex-prostituta (luz branca- ainda na mesa) Sabe o que eu fico pensando? Por que não há prostitutas nas igrejas? levanta-se) As prostitutas são tão carentes e nem imaginam que são amadas por Deus. (Pausa) Ei gato!
Barman: Ah, de novo não...
Ex-prostituta:(para o barman) Desculpe, mas tente me entender... O preconceito impede que olhemos com carinho para elas; são completamente marginalizadas. Elas são amadas, mas não sabem disso, pois não há quem lhes fale desse amor. Minha vida mudou completamente, o meu corpo, que alimentava a mim e aos outros, e não tinha nenhum valor, hoje é templo do Espírito Santo. Sinto-me purificada pelo sangue do Justo. Por que outras não podem sentir como eu me sinto hoje?
Cristão: Hoje eu continuo gostando de rock, para mim não há música mais alegre do que esta. Não sei como passei tantos anos numa igreja, cego, sem ver o que agora eu vejo. Ainda bem que Cristo mostrou-me a real alegria antes, senão poderia ter sido bem pior. Glória a Deus por ter mudado a minha vida. Dois dos meus antigos amigos hoje tocam comigo em uma banda evangélica, e os outros, infelizmente, continuam freqüentando os clubes da cidade.(vai saindo e vira-se para o público) Ah, e hoje, quando chego em meu quarto, durmo em paz, plena paz.
Ex-alcoólatra: Foi difícil, muito difícil, até que vi a mão de Deus na mão de um homem. Na verdade, Deus não possui outras mãos senão as humanas para demonstrar todo seu amor. Resolvi estender minha mão à única mão que fora estendida a mim, até então. Foi um processo difícil: tremia, vomitava, sangrava, tinha convulsões, precisava desintoxicar-me. E a mão esteve sempre comigo. Cristo me dava esperança para continuar, acreditar que minha vida não precisava ser aquela miséria que vinha sendo. Que mais mão estejam à disposição para demonstrar o amor de Deus.
Barman: Ê amigo, não vai vacilar, hein!
Ex-drogado(p/ o barman) Sem chances! (p/ o público)Deus me sustém!(senta)
(todos congelam em suas mesas. O barman prepara uma bebida, vai até a boca do palco, iluminado por um foco de luz branca)
Barman: Que sabor você quer? (tempo) Para sua vida?
(luzes apagadas, todos levantam e saem)
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